Quando era miúda gostava muito de Nuno Álvares Pereira. Já não me lembro porquê, mas suspeito que terá sido pela lenda de guerreiro invicto que acabou monge descalço, coisa de molde a inflamar romantismos infantis. Ou um desenho mais garboso de um homem de armadura e espada erguida num cavalo à desfilada: a cabeça das crianças é BD e amores e embirrações explicam--se muito assim, sem grandes profundezas. Fosse como fosse, guardei Nun'Álvares, com os demais nomes e feitos da história recôndita do País, com a memória das salas do Externato Alves Redol - dirigido por uma irmã do escritor - , à mistura com o cheiro a borracha e aparos e borrões, o azul índigo das batas mais a ardósia empoeirada sob os retratos severos de Salazar e Carmona e o crucifixo da praxe.
40 anos depois, o "santo condestável", como lhe chamavam os livros do salazarismo (Afinal, era "beato" desde 1918 e já Pio XII tinha querido em 1947 santificá-lo "por decreto", e há décadas que se asseveram "milagres" para o justificar), reemerge para revivificar todas as lembranças dos anos 60, com história a condizer. A de uma senhora que há nove anos, num restaurante de Ourém, fritava peixe quando óleo a ferver lhe atingiu um olho, causando a perda da visão e danos que médicos terão dito irreversíveis. Ao fim de dois meses e meio, contudo, e graças a uma oração feita à noite na cama e um beijo numa imagem de Nuno Álvares, voltou a ver. Para se certificar de que fora milagrada, ligou a TV e viu--a claramente vista. A história tal qual conta-a o filho, Carlos Evaristo, ao jornal regional O Mirante, que o cita: "Nunca pensei que fosse um milagre a tal ponto fenomenal para ser utilizado para a canonização."
A senhora, Guilhermina de Jesus, tem agora, segundo O Mirante, 64 anos, e "não queria", diz o filho, " ser catapultada para este foco de luz". E certo é que até hoje, a uma semana e pouco da canonização da personagem histórica que a Associação Ateísta Portuguesa apelidou de "colírio" - num comunicado de protesto em relação ao espantoso voto de "congratulação" aprovado no parlamento por CDS/PP, PSD e PS e à adesão de Cavaco Silva, Jaime Gama, do ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, e do chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (todos na "comissão de honra" da coisa) à cerimónia de 26 de Abril em Roma -, Guilhermina logrou esta coisa extraordinária que é ainda não ter sido estrela de talk show ou especial de entrevista. Num país no qual a Constituição estabelece a separação entre Estado e religião mas onde a maioria dos deputados e as mais altas figuras do Estado não têm pejo em "congratular-se" com o facto de uma confissão considerar que um homem do século XIV salvou um olho de uma mulher do século XXI, milagre mesmo é isso: que alguém resista ao pagode.
Fernanda Câncio
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