Já aqui chamei a atenção para o que está a acontecer na Assembleia da República, mais concretamente na Comissão de Ética.
Hoje saiu na rifa Manuela Moura Guedes. Há pouco "revelou" ter o primeiro-ministro telefonado para o Rei de Espanha a queixar-se do Jornal Nacional da TVI. Esclareceu a depoente que "soube por interposta pessoa que o dr. Cebrián [CEO do grupo Prisa] contou ao dr Balsemão, em jeito de desabafo, que já estava farto dos telefonemas do primeiro-ministro por causa da suspensão do jornal de sexta. E disse que o primeiro-ministro até para o Rei de Espanha tinha ligado, para ver se conseguia pressionar a Prisa", rematando com uma frase que arrancou gargalhadas "é uma pressão real, de facto".
A procissão ainda vai no adro, mas ao exibicionismo serôdio de Mário Crespo, promovendo a distribuição dos seus panfletos e a exibição de uma t-shirt a cheirar a lençóis, seguiu-se Felícia Cabrita, num estilo consentâneo com o tratamento que tem sido dado às escutas e com o nível dos diálogos revelados pela seu jornal. Depois veio o arquitecto Saraiva, no estilo doutoral e delirante a que habituou os indígenas, explicar a tramóia.
Faltava Manuela Moura Guedes para trazer ficção ao espectáculo. Saber de alguma coisa por interposta pessoa que soube por outra que fulano contou a sicrano que Sócrates telefonou para o Rei de Espanha, é verdadeira ficção. E da boa.
Sabendo-se que, à partida, não seria José Sócrates a contar que tinha telefonado para o Rei de Espanha, isso quer dizer que a informação só poderia ter saído do próprio Rei de Espanha ou de alguém que a ele tivesse acesso e com quem tivesse desabafado. Admitindo que a "revelação" seja verdadeira, verifica-se então que o rei Juan Carlos desabafa com quem não sabe guardar segredos e revela a terceiros conversas particulares. Em rigor, foi isto que Manuela Moura Guedes foi dizer à Comissão de Ética.
Eu não estou a ver nenhum primeiro-ministro português, por mais mentecapto que seja, a queixar-se de um empresário ou de empresa espanhola ao Rei de Espanha. Menos ainda que este, sabendo-se quem é, o fosse transmitir ou desabafar junto de terceiros, numa cadeia sucesiva, até o desabafo chegar à visada. E não é o facto de Juan Carlos ser rei que torna a "estória" inverosímil. É a educação que lhe foi dada, o seu estatuto, carácter e personalidade que, obviamente, o impedem. Juan Carlos não é Mário Crespo.
O presidente da Comissão de Ética, Marques Guedes, pela linhagem e educação, também sabe isto. E sabe muitas coisas mais. Mas nada diz e vai permitindo que o espectáculo continue, enxovalhando de forma inapelável as instituições parlamentares, tornando-as parte de um circo ao qual não podem (não deviam) pertencer.
Sejamos directos: o que está a acontecer na Comissão de Ética, sendo responsabilidade de todos os partidos, é por demais culpa de quem a dirige.
Marques Guedes, ao permitir que as coisas se passem da forma por que estão a ocorrer, valorizando, e permitindo, discursos opinativos e a teatralização das intervenções de quem lá vai tomar um cafezinho com os senhores deputados, admitindo que simples rumores e intrigas medíocres se transformem em notícia, em vez de ajudar ao esclarecimento dos factos, dá um contributo inestimável para o desprestígio do Parlamento.
Pode ser que as audições daqueles que ainda não foram ouvidos, ou que estão a ser ouvidos, como Francisco Pinto Balsemão, possam conferir outro nível ao trabalho da comissão. Mas até lá...
Há alturas em que não podemos ser quem somos se queremos continuar a ser como somos. Aos nossos próprios olhos, aos olhos dos nossos filhos e de todos aqueles que nos rodeiam.
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