3 de agosto de 2010

Minha Avó querida!

Madrinha, minha Avó querida.

Não me morreste!, não morreste a nenhum destes que aqui estão. Vim a toque de caixa – como dirias – ver se estavas em paz. Bem sei o pouco de gostavas de mariquices, como dizias. Detestavas carpideiras e afins. Se fosses tu a mandar, teria gozado as minhas férias até ao fim. Não vim chorar-te, descansa. Vim beijar-te e ver se estava tudo à tua medida. E ainda bem que vim. Estavas com as mãos como os cangalheiros as põem, enrodilhadas num terço. Cheguei tarde – estava longe – e estavam já cimentadas uma à outra, as tuas mãos. Desprendi-tas para que me desses uma. Ajoelhei-me, que o caixão estava baixo. Chorei lágrimas que não sabia que tinha. Fiquei ali algum tempo, a relembrar o que foste, o que me foste. Não rezei. Porque não sei e porque não acredito que estejas num sítio melhor (aqui chamar-me-ias herege). Acredito apenas no que vejo, na tua face serena e sem dor, o oposto do que a morte te obrigou a mostrar nestes últimos dez anos. Estavas hoje como que a dormir, como dormias antes daquela argola maldita em que tropeçaste se ter empecilhado no teu caminho.
A tua filha, a minha mãe, perguntou-me se eu queria uma cadeira. Disse-lhe que não, à tua filha, minha mãe, que hoje se portou como tu te portarias, como uma mulher de ferro. A minha mãe. Levei-te um livro, em homenagem aos muitos que me compraste. Entreguei-te aquele de significado especial, o que marca a minha união com a mulher que nunca conheceste (já não estás cá há muito). Escrevi-te lá umas frases que nunca vais ler. Foram para mim, o egoísta. O mesmo que te enfiou o livro no caixão. E lá ficaste tu, uma mão agarrada ao terço, a outra ao livro que te dei. Ainda assim, e também por isso o fiz, sei que preferirias ser eu a arranjar-te, em vez de um qualquer desconhecido. E só eu, com a sem-cerimónia que te aprendi, o poderia fazer.
Quero dizer-te que fazes parte de mim, que sou à tua imagem. Para o bem e para o mal, e aqui entre nós que raio de feitio me pegaste, só estou aqui hoje, a escrever estas linhas, porque me criaste de forma a não fazer aquilo a que sociedade – esse ajuntamento de homens e mulheres – nos manda. Não sei se era isso que me querias ensinar, mas foi isso que aprendi.
Pouco te visitei nestes dez anos em que me foste morrendo. Fi-lo pelas razões que saberias explicar melhor que eu. Detestarias que te visse assim. Que eu te visse assim. Frágil, dependente, o oposto da mulher que sempre foste. Ainda assim, soltaste o teu sorriso algumas vezes (o teu sorriso bonito – antes do teu bisneto nascer era o mais lindo do mundo). Quando te pus o nosso Francisco de sete dias nas mãos, sorriste-lhe e sorriste-me. Quando te ergui daquele sofá malvado para apanhares sol, sorriste-me. Das vezes em que não me reconheceste, fui-me embora em teu respeito. Por respeito a ti. E quando voltava, contra a vontade que terias e já não tinhas, fazia-o para ver se te apanhava como eras. Não te queria trair, vendo-te como já não eras e como não quererias que te visse. Fi-lo algumas vezes, desculpa, mas a esperança de te ver sorrir era mais forte do que eu.
Hoje, que dizem me que me morreste, no dia em que a carne fenece, depois de te beijar a testa e de te pegar na mão e de chorar como o teu menino chorava, fui percorrer os nossos caminhos. Fui sentir os nossos espaços. Os armários da nossa casa tinham minguado. Estavam pequeninos. Lá continuava aquela lata do pão, azul de tampa branca, donde tiraste o pão para as milhões de sandes que me fizeste. Procurei as facas com que os cortavas – aos pães – e lhes barravas a manteiga. Lá estavam elas, as mesmas. Mexi nos teus pratos, nas tuas louças, subi ao quarto onde já há dez anos não dormias. Estavas em todo o lado.
Fui ao lameiro colher-te uma rosa e coloquei-ta entre os dedos da mão em que permiti o terço.
Estás em todo o lado, meu amor, estás na minha vida todos os dias. Estás aqui a escrever estas linhas, ainda que não pudesses compreender metade delas. Vou ensinar a quem de mim vier o que me foste, também para isso escrevo estas palavras. Vou lê-las na igreja e vou fazer por ouvir a tua tosse cava lá ao fundo. Na mesma igreja para onde me arrastavas. A tosse que era parte do teu ser. Nem imaginas as saudades que tenho te ouvir tossir.
Agora, meu amor – e deixa-me, por uma vez, chamar-te meu amor –, descansa em paz. Ficamos cá para te honrar, para honrar a tua memória e os teus quereres e saberes. A tua menina, minha mãe, que foi tua mãe por dez anos, está em paz. Ela e o teu filho vão cuidar do meu avô, do teu homem. O meu pai, teu genro, está sempre presente, como sempre esteve e está para o que der e vier. A tua neta, minha irmã, vai portar-se à tua altura. Está uma mulher e tem este irmão para lhe fazer o teu pão com manteiga.
Não prometo não chorar mais, dou hoje comigo de lágrima fácil, mas prometo ensinar-te ao Francisco. Ao contrário do que dizem os sinos que dobram lá fora, não nos morreste. Não és mulher de morrer. Daqui para fora, cada uma das mãos que há-de levar o teu caixão é também a tua, porque sem ti nenhum de nós estaria aqui. Nem nenhum de nós faria como é.
Uma última coisa te digo, para além das muitas que hei-de continuar a dizer de ti. Antes de te ler estas palavras que escrevemos a meias, vou mostrá-las ao meu mundo, para que todos saibam que hoje não morreu uma mulher qualquer. De resto, não nos morreste, apenas nos saíste da vista, o mais aldrabão dos sentidos.

Rogério da Costa Pereira no Jugular

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